*
Morrer só
para agradecer.
Ir ao inferno
descer
apagar os males do mundo
tocar fogo nas vestes
em meio ao povo
ir ao fundo do poço
sem fundo.
Morrer só
para agradecer.
Passar fome
e lembrar do sertão
distante
ressuscitar minha mãe
ofegante
depois de caminhar
sobre as brasas do sonho
meu pai depois do banho
limpo de sal
sem peso
sem medo
longe de qualquer mal.
Morrer só
para agradecer.
Perder tudo
o que ganhei
na queda de braço
na força desigual
se por acaso
machuquei o destino
de alguém
não sei
as pontes que construí
sobre casas alheias
onde havia feiras
de passarinhos
as asas que sem querer
cortei.
Morrer só
para agradecer.
O tempo
todo o esquecimento
a casa vazia
no meu peito
o mendigo no farol vermelho
da cidade
o olhar que lancei
do alto de meu sapato
o sol que não iluminei
fui eu que pisei
na grama da praça
na lama de meu país.
Morrer só
para agradecer.
E aí.
Depois de uns dias
encontrarão o meu corpo
sob a luz de um abajur
o livro caído
dentro das linhas
da mão
logo dirão que eu fui
dos homens o mais feliz
meu exemplo
tomará o céu
de outro azul
verão
que a morte
é o nosso último
agradecimento.
Na hora inglória
da morte
deixar de nós
para os outros
os laços todos
só o que valeu
a pena.
Esta paz
este pó
e por que não dizer
este poema.
*
[ Mais um poema, este escrito por mim,
de improviso, em Porto Alegre, e lido
na abertura da FestiPoa, na segunda-feira
passada, para agradecer a homenagem
que recebi e valeu e beijos e aquele
superabraço feliz e emocionado ]