
MAS
Dois autores, faz tempo, me fizeram pensar no uso da conjunção adversativa “mas”. Toda vez que uso, na fala, não na escrita, penso no poema acima do mestre Francisco Alvim.
E penso no trecho abaixo do livro Pedagogia da Autonomia, de Paulo Freire.
Aliás, um dos meus orgulhos recentes é ter gravado dois áudios-livros de Paulo Freire, o Pedagogia da Autonomia e o Pedagogia do Oprimido. O primeiro deles já está no ar. Clicando aqui vocês podem conferir uma amostra da leitura.
No mais, vamos abaixo ao que Freire fala sobre o uso do “mas” e, pela casa, andando para lá e para cá, é o momento de refletirmos juntos.
Beijos a todas e todos, fiquem bem, e até o próximo assunto.
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Torno-me tão falso quanto quem pretende estimular o clima democrático na escola por meios e caminhos autoritários. Tão fingido quanto quem diz combater o racismo, mas, perguntado se conhece Madalena, diz: “Conheço-a. É negra, mas é competente e decente”. Jamais ouvi ninguém dizer que conhece Célia, que ela é loura, de olhos azuis, mas é competente e decente. No discurso perfilador de Madalena, negra, cabe a conjunção adversativa mas; no que contorna Célia, loura de olhos azuis, a conjunção adversativa é um não-senso. A compreensão do papel das conjunções que, ligando sentenças entre si, impregnam a relação que estabelecem de certo sentido – o de causalidade: “falo porque recuso o silêncio”; o de adversidade: “tentaram dominá-lo mas não conseguiram”; o de finalidade: “Pedro lutou para que ficasse clara a sua posição”; o de integração: “Pedro sabia que ela voltaria”, não é suficiente para explicar o uso da adversativa mas na relação entre a sentença “Madalena é negra” e “Madalena é competente e docente”. A conjunção mas, aí, implica um juízo falso, ideológico: sendo negra, espera-se que Madalena nem seja competente nem decente. Ao reconhecer-se, porém, sua decência e sua competência, a conjunção mas se tornou indispensável. No caso de Célia, é um disparate que, sendo loura de olhos azuis, não seja competente e decente. Daí o não-senso da adversativa. A razão é ideológica e não gramatical.