OS INSTRUMENTOS DE QUEM ESCREVE
O violão é um outro braço. Isso fala sempre quem toca um violão. Ou um violino. Rabeca. Até o poeta Cartola já cantarolou, tão lindo: “Ah, este bojo perfeito / Que trago junto ao meu peito”. O instrumento como extensão dos órgãos do artista. O piano, por exemplo. Já ouvi dizer da própria boca de um concertista: todo pianista é um médico. Operando cada uma das teclas. O piano, um Lázaro deitado. Um coração, pelo toque do solista, ressuscitado. A guitarra, quantas foram incendiadas. Como se o virtuose queimasse as próprias vestes. E as atirasse, as cordas feridas, à plateia. E o tambor? É a vibração da alma. A carne. Um fóssil vivo pela batida dos ossos. E o saxofone então? E a flauta fálica? Não falta analogia (anatomia) para o som que se cospe. Uma gaita que a saliva morde entre os dentes. O toque dos dedos na harpa corpulenta. A sanfona safada. O pandeiro. O molejo da munheca. O baterista que treme. Em múltipla excitação. Uma sinfônica inteira de intestino. Pulmão, buceta, colhão. Membros sonoros. Daí, o mesmo digo do escritor e da escritora em manobra com seu repertório. A dicção de suas frases. A maneira como cada um, cada uma, compõe um conto. Põe na página (partitura) a sua literatura. A saber: escrever é desdobramento da língua de quem escreve. Unha, olho. Linha que passa pelo caminho da espinha. A eletricidade ao pé do ouvido. Do fundo do estômago vem o verso. Dá fome. Sofre com o calor. Geme no inverno. Em resumo: igualmente o romance que você manuscreve nos cadernos, digita nos arquivos de computador, é essa ponte constante. De dentro para fora. Atenção, orquestra. Um, dois, três. Mãos à obra. E bom show.
*
ENSAIOS DE IMPROVISO
22/10/2020 por MARCELINO FREIRE