A LUZ NA LITERATURA
Qual a trajetória da luz? Esclareço: como amanhece, entardece, anoitece para seus personagens? De que forma vai passando o tempo na sua história? Os minutos? Os segundos? As horas? Às vezes escrevendo paro e penso: qual sol está batendo naquele quarto? Janela? Corpo? Copo? Jarro? Espera? A noite quando chega, de que forma chega? E a chama da vela? O sol? O cigarro? A estrela? Em alguns escritores, fico só vendo: como cada um e cada uma trabalha o movimento da noite e do dia. Vem-me à vista, na memória e na prática, o romance A Paixão de Almeida Faria. O livro, que inspirou Lavoura Arcaica de Raduan Nassar, é dividido em três partes: Manhã, Tarde e Noite. Uma vez Faria me contou o tanto que ele trabalhou para que cada palavra, adjetivo, substantivo amanhecesse, entardecesse, anoitecesse frase a frase. Todos os ciclos ali, por ele sinalizados. O espaço. A densidade. As modulações do tempo. Dificilmente enxergamos, com este rigor, o dia percorrido na vida de um personagem, assim, quando o escrevemos. Mais fácil pôr, em cena, um relógio para bater. Os ponteiros para circular. Um atrás do outro. Em um tic tac sem parar. Sem sair do mesmo lugar-comum. Eta danado. Aprendo e apreendo sempre com os pintores a incidência das cores para movimentar um quadro “ilusoriamente” parado. Presto muita atenção numa espécie de técnica que chamo atmosférica. Elétrica. Com que os artistas trabalham as nuances na pintura. Onde o olhar do “observador” e do “leitor” se pluga. Onde acentua-se, aqui e acolá, uma sombra. Nas linhas mais tênues. Subterrâneas artimanhas. Dentro de uma mesma luz. Em que toda literatura, ao meu ver, também se banha.
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Archive for novembro \17\+00:00 2020
ENSAIOS DE IMPROVISO
Posted in Textos on 17/11/2020|
QUARANTENADO
Posted in Textos on 13/11/2020|
Hoje, sexta, acordei pensando em teatro. E rascunhei o texto abaixo. Possivelmente porque hoje, especialmente, estreiam dois textos meus. Explico: “Amar É Crime”, às 20 horas, com atuação de Jônata Gonçalves e direção de Max Reinert (para mais detalhes, acessem o Instagram: @amar_e_crime). “Canto ao Pé do Ouvido”, às 21 horas, com atuação e direção de Naruna Costa (acessem: @donaruth.ftnsp). Sem contar o espetáculo “Contos Negreiros do Brasil”, dirigido por Fernando Philbert, que voltou em cartaz às segundas de novembro, sempre às 21 horas (acessem: @contosnegreirosdobrasil). Salve e salve. Meu amor a todos os envolvidos e envolvidas e profundo agradecimento.
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o sol dando volta
na terra a lua quando
acende e vai embora
o teatro
o astronauta enclausurado
na solidão do espaço
o fundo dos olhos
o teatro
o silêncio do vulcão
a explosão por dentro
do mar a respiração
o teatro
tudo o que acontece
entre a vida e a morte
o que nos move todo
o tempo
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ENSAIOS DE IMPROVISO
Posted in Textos on 10/11/2020|
A MERDA NA LITERATURA
No âmago. Dentro do ser. Nas profundezas da alma. Nas entranhas. No fundo. No mais recôndito. Escondido. Um mergulho preciso. No cerne. No ponto. Buscando lá no mais secreto. À procura do desconhecido. No invisível. No indizível. Em mim. Em si. Adentro. No alto de suas convicções. Na duração do silêncio. De rara emoção. No espaço-tempo. O que bate intensamente. O que verdadeiramente se sente. Ao encontro do coração. Às lágrimas. Copiosamente. A sensação de vazio. No que está guardado. Ensimesmado. No que há de incerto. Inatingível. Pueril e puro. O silêncio do pensamento. Em direção ao inexplicável. Ao obscuro. No exercício da vida. Em meio ao sofrimento. Na existência plena. A beleza infinita. Total. No interior. Na visceral entrega. De todas as coisas o espírito. Nos meandros da mente. No turbilhão de sensações. Tantas emoções. Incontáveis alegrias. No que há de sagrado. Amalgamado. Intrínseco. Tão humano. E singular. Na plenitude. Pelo ar. O que existe de mais sincero. Incógnito. Sem palavras. O que nos toca. No íntimo. O que nos arrebata. As palpitações de quem ama. Aos desejos de quem se entrega. Ao ritmo divino. Em consonância. Em uma única substância. Na cumplicidade dos afetos. Na delicadeza dos gestos. A melhor tradução de amizade. Quanta sensibilidade em uma pessoa. Doce. Sincera. O que ressoa. Alguém que flui. O que de fato interessa. A salvação da humanidade. Terna. Tenra. Eterna. Quando um escritor ou escritora. Não tem o que dizer. Põe o coração no púlpito e fala. Cada merda.
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ENSAIOS DE IMPROVISO
Posted in Textos on 06/11/2020|
A FAMÍLIA LITERÁRIA
Eu não sou clariceana. Ela veio me dizer. Chegaram para ela e comentaram. Que ela era da mesma família de Clarice Lispector. Isso só porque, ó, vê, a epígrafe de meu romance vem assinada pela autora de Água Viva. Uma epígrafe tem esse poder de revelação? Ela ficou esperando de mim uma explicação. Vejamos: um livro com citação de Guimarães Rosa. O que essa escolha significa de verdade? Eis aqui um estreante que gosta da oralidade. Acredita no poder da linguagem. Ao que tudo indica, é cria de um mesmo Grande Sertão. Escolha um trecho de uma música dos Beatles para ver o que acontece. De Luiz Gonzaga um fragmento do clássico Asa Branca. Há quem prefira epígrafes em outros idiomas: francês, inglês, espanhol, alemão. Poliglota esse, não? Tem quem comece cada conto com uma filiação. Assinaturas, nas narrativas, de nomes como Borges, Cortázar, Machado, Graciliano. Digo sempre: um time tão vasto assim não deixa de ser uma “carteirada”. Tipo: cuidado com quem você está falando. Olha com quem eu ando. Olha de quem sou refém. A saída é assumir, porra. O que é que tem? Sou um poeta barroco. Modernista, ao certo. Devoto da poesia concretista. Faço parte do movimento periférico. Sou da turma da ficção científica. Tenho amigos dentro da Academia. Quem diria? Discípulo confesso daquele padre. Creio na autoajuda. Vivo de vender livro na rua. Transito pela filosofia. É, de fato, o que você deseja para o seu livro? Logo de cara? À primeira vista? Dedicatória também é um pacto de repertório. Um compromisso que você assina. Na orelha, na contracapa. No convite para quem vai escrever o prefácio. Aliás, há um famoso caso de um livro que precisou ter a orelha cortada. Quem assinava o elogio ao autor matou uma pessoa pouco antes de a obra sair da gráfica. Ave nossa. Ela pergunta se, em uma próxima, por segurança, não seria o caso de inventar uma autoria. Um escritor ou escritora que não exista. Já sei. Sei lá. E se eu usar uma frase sua, hein? O que será que vão pensar?
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ENSAIOS DE IMPROVISO
Posted in Textos on 04/11/2020|
A POESIA EM ESTADO LÍQUIDO
Comum que haja um intervalo, durante as oficinas, para um banheiro, um café. A hora do cigarro. Uma ligação para saber se está tudo bem em casa. A poesia também. Aviso: ela tem o instante em que precisa soltar a bexiga. Dar uma baforada. Deixar um recado na secretária eletrônica. Eta danado! Eu estava recentemente conversando sobre isto com o poeta Pedro Blanco. Ele que está lançando, pelo Selo do Burro de São Paulo, o segundo livro de poesias O Gato Tá no Micro-Ondas e a Tesoura Eu Deixei com o Bebê. Ele que diz que o seu corpo ajuda a escrever a própria poesia. Explico: o poeta começa a falar em voz alta um verso e o braço ou o estômago ou a embocadura, na garganta, pede a próxima palavra. Quem assiste a Pedro Blanco dizendo os seus poemas saberá do que eu estou falando. O corpo, ali, incorporando. “Inscrevendo” muito mais do que “escrevendo”. Inaugurando um trejeito, uma respiração, um entremeio. Aliás, uma noção, assim, corporal, nos ajuda a pensar a poesia como um esqueleto. Um organismo. Um veículo que se movimenta a cada linha. Qualquer texto, para mim, não se deve ler sem o peso da pausa, da pulsação, dos caminhos que a palavra caminha. A saber: quando no soneto Versos Íntimos, Augusto dos Anjos diz “Toma um fósforo. Acende teu cigarro”, é preciso que a gente acompanhe o fósforo sendo entregue, o fogo aceso, a fumaça tomando o ar do bar. O bar, é claro, é por minha conta. O balcão em que vejo os dois amigos apoiados. Um que presta solidariedade ao outro diante da “ingratidão, esta pantera”. O cenário da poesia também faz parte da busca de uma atmosfera. É teatro também o verso de um poeta. José, de Drummond, precisa saber que a festa acabou. A terra está arrasada. Dá-se uma parada dramática a cada “E agora, você?”. Fodeu geral. O poeta Nelson Maca, lá de Salvador, é outro que bate o olho no horizonte e tudo verticaliza. Pedra e pau. A ira que faísca no olho do genial Maca toda vez em que ele solta o verbo. Gesticula a sua Gramática da Ira. Poesia não é catálogo de eletrodoméstico. Não é algo que se leia como se fosse uma petição. Tudo dentro de um mesmo ritmo líquido. Da água, que se bebe fria, à vida em ebulição.
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