A POESIA EM ESTADO LÍQUIDO
Comum que haja um intervalo, durante as oficinas, para um banheiro, um café. A hora do cigarro. Uma ligação para saber se está tudo bem em casa. A poesia também. Aviso: ela tem o instante em que precisa soltar a bexiga. Dar uma baforada. Deixar um recado na secretária eletrônica. Eta danado! Eu estava recentemente conversando sobre isto com o poeta Pedro Blanco. Ele que está lançando, pelo Selo do Burro de São Paulo, o segundo livro de poesias O Gato Tá no Micro-Ondas e a Tesoura Eu Deixei com o Bebê. Ele que diz que o seu corpo ajuda a escrever a própria poesia. Explico: o poeta começa a falar em voz alta um verso e o braço ou o estômago ou a embocadura, na garganta, pede a próxima palavra. Quem assiste a Pedro Blanco dizendo os seus poemas saberá do que eu estou falando. O corpo, ali, incorporando. “Inscrevendo” muito mais do que “escrevendo”. Inaugurando um trejeito, uma respiração, um entremeio. Aliás, uma noção, assim, corporal, nos ajuda a pensar a poesia como um esqueleto. Um organismo. Um veículo que se movimenta a cada linha. Qualquer texto, para mim, não se deve ler sem o peso da pausa, da pulsação, dos caminhos que a palavra caminha. A saber: quando no soneto Versos Íntimos, Augusto dos Anjos diz “Toma um fósforo. Acende teu cigarro”, é preciso que a gente acompanhe o fósforo sendo entregue, o fogo aceso, a fumaça tomando o ar do bar. O bar, é claro, é por minha conta. O balcão em que vejo os dois amigos apoiados. Um que presta solidariedade ao outro diante da “ingratidão, esta pantera”. O cenário da poesia também faz parte da busca de uma atmosfera. É teatro também o verso de um poeta. José, de Drummond, precisa saber que a festa acabou. A terra está arrasada. Dá-se uma parada dramática a cada “E agora, você?”. Fodeu geral. O poeta Nelson Maca, lá de Salvador, é outro que bate o olho no horizonte e tudo verticaliza. Pedra e pau. A ira que faísca no olho do genial Maca toda vez em que ele solta o verbo. Gesticula a sua Gramática da Ira. Poesia não é catálogo de eletrodoméstico. Não é algo que se leia como se fosse uma petição. Tudo dentro de um mesmo ritmo líquido. Da água, que se bebe fria, à vida em ebulição.
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ENSAIOS DE IMPROVISO
04/11/2020 por MARCELINO FREIRE