Às vésperas da sétima edição da Balada Literária eu gostaria de deixar aqui um poema. Longo. Uma palavra, assim, na página. Uma celebração da poesia, da literatura. Eu gostaria de fazer diferente, hoje. Não falar da programação, que todo mundo já conferiu e pode conferir aqui no site. Eu queria uma razão do tipo: por que fazer um evento deste jeito, a duras batalhas. Na raça e na alma. Meu Cristo! Por isso, creio, escolhi o poema Auto-Retrato, abaixo, do baiano Fred Souza Castro. Explico: estive em Salvador em julho deste ano, sendo um dos jurados de uns editais de lá. Entre os livros que apareceram, veio um original do Fred. Ele, por unanimidade, recebeu a nossa aprovação. E louvação. Descobrimos que o grande poeta tinha 81 anos e morava no interior da Bahia. Quanta alegria a descoberta de um artista. Cheguei a fazer o convite para que ele viesse participar desta Balada. Estávamos acertando a vinda dele. Quando recebi a notícia, súbita, de seu falecimento. Daí, no domingo, dia 2 de dezembro, aviso: faremos uma homenagem à palavra dele, que tanto nos tocou. E que tanto nos tocará. A Balada Literária, pois, se existe, é por isto. Para espalhar a poesia, eternamente. Enquanto, aqui, a gente viver. Ao grande poeta, o meu abraço comovido. Estamos juntos. Para sempre, para valer.
AUTO-RETRATO
[ Fred Souza Castro ]
Sem casca sou
nascido
no imo do meu
umbigo
a cicatriz ainda
a voz pede licença
entre ruídos
e o corpo, menos que sombra,
escorrega pelo vazio
as mãos são costuradas nos bolsos
escondidos
e não saem senão para os castigos
ou para as exigências naturais
de trabalho,
de sexo,
de fome
e de outros humanos rituais
sou filho de pai morto
e ele vai
comigo
eu nunca sei de
mapas
nem destinos
espero sempre um punhal desconhecido,
por isso em minha carne tenho guizos
que me avisam de todos os perigos
gosto do sal,
de espelhos,
de relógios
(e peixes em aquários de cristal)
estes porque faturam meu passado;
os demais, escondidos, porque rios
e o sal porque me dá,
da eternidade,
o rumo certo
(e alguns certos desvios)
amo as paixões, os jogos, as querelas
e os trajes coloridos desta aldeia
e, embora creia em Discos Voadores,
não os espero além das sextas-feiras
temo, da morte, a negação da carne
e, da carne, o desgaste de vivê-la
eu não espero nada que não seja
com a surpresa do assalto e da peleja
não sei pedir nem esperar favores
e jamais trajaria de mendigo;
aos príncipes não sei tecer louvores
e as falsas dores, todas, abomino
estou à margem
e gosto de dizê-lo
para não enganar os falsos zelos
de quantos queiram me
incluir em esquemas
sou, a meu modo, livre
(por escolha)
e a folha
de papel em que me inscrevo
é outra que não eu,
que sou eu mesmo
guardado no meu corpo
e, a mim,
fiel.