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A LUZ NA LITERATURA

Qual a trajetória da luz? Esclareço: como amanhece, entardece, anoitece para seus personagens? De que forma vai passando o tempo na sua história? Os minutos? Os segundos? As horas? Às vezes escrevendo paro e penso: qual sol está batendo naquele quarto? Janela? Corpo? Copo? Jarro? Espera? A noite quando chega, de que forma chega? E a chama da vela? O sol? O cigarro? A estrela? Em alguns escritores, fico só vendo: como cada um e cada uma trabalha o movimento da noite e do dia. Vem-me à vista, na memória e na prática, o romance A Paixão de Almeida Faria. O livro, que inspirou Lavoura Arcaica de Raduan Nassar, é dividido em três partes: Manhã, Tarde e Noite. Uma vez Faria me contou o tanto que ele trabalhou para que cada palavra, adjetivo, substantivo amanhecesse, entardecesse, anoitecesse frase a frase. Todos os ciclos ali, por ele sinalizados. O espaço. A densidade. As modulações do tempo. Dificilmente enxergamos, com este rigor, o dia percorrido na vida de um personagem, assim, quando o escrevemos. Mais fácil pôr, em cena, um relógio para bater. Os ponteiros para circular. Um atrás do outro. Em um tic tac sem parar. Sem sair do mesmo lugar-comum. Eta danado. Aprendo e apreendo sempre com os pintores a incidência das cores para movimentar um quadro “ilusoriamente” parado. Presto muita atenção numa espécie de técnica que chamo atmosférica. Elétrica. Com que os artistas trabalham as nuances na pintura. Onde o olhar do “observador” e do “leitor” se pluga. Onde acentua-se, aqui e acolá, uma sombra. Nas linhas mais tênues. Subterrâneas artimanhas. Dentro de uma mesma luz. Em que toda literatura, ao meu ver, também se banha.

*

Hoje, sexta, acordei pensando em teatro. E rascunhei o texto abaixo. Possivelmente porque hoje, especialmente, estreiam dois textos meus. Explico: “Amar É Crime”, às 20 horas, com atuação de Jônata Gonçalves e direção de Max Reinert (para mais detalhes, acessem o Instagram: @amar_e_crime). “Canto ao Pé do Ouvido”, às 21 horas, com atuação e direção de Naruna Costa (acessem: @donaruth.ftnsp). Sem contar o espetáculo “Contos Negreiros do Brasil”, dirigido por Fernando Philbert, que voltou em cartaz às segundas de novembro, sempre às 21 horas (acessem: @contosnegreirosdobrasil). Salve e salve. Meu amor a todos os envolvidos e envolvidas e profundo agradecimento.

*

o sol dando volta
na terra a lua quando
acende e vai embora

o teatro

o astronauta enclausurado
na solidão do espaço
o fundo dos olhos

o teatro

o silêncio do vulcão
a explosão por dentro
do mar a respiração

o teatro

tudo o que acontece
entre a vida e a morte
o que nos move todo

o tempo

*

A MERDA NA LITERATURA

No âmago. Dentro do ser. Nas profundezas da alma. Nas entranhas. No fundo. No mais recôndito. Escondido. Um mergulho preciso. No cerne. No ponto. Buscando lá no mais secreto. À procura do desconhecido. No invisível. No indizível. Em mim. Em si. Adentro. No alto de suas convicções. Na duração do silêncio. De rara emoção. No espaço-tempo. O que bate intensamente. O que verdadeiramente se sente. Ao encontro do coração. Às lágrimas. Copiosamente. A sensação de vazio. No que está guardado. Ensimesmado. No que há de incerto. Inatingível. Pueril e puro. O silêncio do pensamento. Em direção ao inexplicável. Ao obscuro. No exercício da vida. Em meio ao sofrimento. Na existência plena. A beleza infinita. Total. No interior. Na visceral entrega. De todas as coisas o espírito. Nos meandros da mente. No turbilhão de sensações. Tantas emoções. Incontáveis alegrias. No que há de sagrado. Amalgamado. Intrínseco. Tão humano. E singular. Na plenitude. Pelo ar. O que existe de mais sincero. Incógnito. Sem palavras. O que nos toca. No íntimo. O que nos arrebata. As palpitações de quem ama. Aos desejos de quem se entrega. Ao ritmo divino. Em consonância. Em uma única substância. Na cumplicidade dos afetos. Na delicadeza dos gestos. A melhor tradução de amizade. Quanta sensibilidade em uma pessoa. Doce. Sincera. O que ressoa. Alguém que flui. O que de fato interessa. A salvação da humanidade. Terna. Tenra. Eterna. Quando um escritor ou escritora. Não tem o que dizer. Põe o coração no púlpito e fala. Cada merda.

*

A FAMÍLIA LITERÁRIA

Eu não sou clariceana. Ela veio me dizer. Chegaram para ela e comentaram. Que ela era da mesma família de Clarice Lispector. Isso só porque, ó, vê, a epígrafe de meu romance vem assinada pela autora de Água Viva. Uma epígrafe tem esse poder de revelação? Ela ficou esperando de mim uma explicação. Vejamos: um livro com citação de Guimarães Rosa. O que essa escolha significa de verdade? Eis aqui um estreante que gosta da oralidade. Acredita no poder da linguagem. Ao que tudo indica, é cria de um mesmo Grande Sertão. Escolha um trecho de uma música dos Beatles para ver o que acontece. De Luiz Gonzaga um fragmento do clássico Asa Branca. Há quem prefira epígrafes em outros idiomas: francês, inglês, espanhol, alemão. Poliglota esse, não? Tem quem comece cada conto com uma filiação. Assinaturas, nas narrativas, de nomes como Borges, Cortázar, Machado, Graciliano. Digo sempre: um time tão vasto assim não deixa de ser uma “carteirada”. Tipo: cuidado com quem você está falando. Olha com quem eu ando. Olha de quem sou refém. A saída é assumir, porra. O que é que tem? Sou um poeta barroco. Modernista, ao certo. Devoto da poesia concretista. Faço parte do movimento periférico. Sou da turma da ficção científica. Tenho amigos dentro da Academia. Quem diria? Discípulo confesso daquele padre. Creio na autoajuda. Vivo de vender livro na rua. Transito pela filosofia. É, de fato, o que você deseja para o seu livro? Logo de cara? À primeira vista? Dedicatória também é um pacto de repertório. Um compromisso que você assina. Na orelha, na contracapa. No convite para quem vai escrever o prefácio. Aliás, há um famoso caso de um livro que precisou ter a orelha cortada. Quem assinava o elogio ao autor matou uma pessoa pouco antes de a obra sair da gráfica. Ave nossa. Ela pergunta se, em uma próxima, por segurança, não seria o caso de inventar uma autoria. Um escritor ou escritora que não exista. Já sei. Sei lá. E se eu usar uma frase sua, hein? O que será que vão pensar?

*

A POESIA EM ESTADO LÍQUIDO

Comum que haja um intervalo, durante as oficinas, para um banheiro, um café. A hora do cigarro. Uma ligação para saber se está tudo bem em casa. A poesia também. Aviso: ela tem o instante em que precisa soltar a bexiga. Dar uma baforada. Deixar um recado na secretária eletrônica. Eta danado! Eu estava recentemente conversando sobre isto com o poeta Pedro Blanco. Ele que está lançando, pelo Selo do Burro de São Paulo, o segundo livro de poesias O Gato Tá no Micro-Ondas e a Tesoura Eu Deixei com o Bebê. Ele que diz que o seu corpo ajuda a escrever a própria poesia. Explico: o poeta começa a falar em voz alta um verso e o braço ou o estômago ou a embocadura, na garganta, pede a próxima palavra. Quem assiste a Pedro Blanco dizendo os seus poemas saberá do que eu estou falando. O corpo, ali, incorporando. “Inscrevendo” muito mais do que “escrevendo”. Inaugurando um trejeito, uma respiração, um entremeio. Aliás, uma noção, assim, corporal, nos ajuda a pensar a poesia como um esqueleto. Um organismo. Um veículo que se movimenta a cada linha. Qualquer texto, para mim, não se deve ler sem o peso da pausa, da pulsação, dos caminhos que a palavra caminha. A saber: quando no soneto Versos Íntimos, Augusto dos Anjos diz “Toma um fósforo. Acende teu cigarro”, é preciso que a gente acompanhe o fósforo sendo entregue, o fogo aceso, a fumaça tomando o ar do bar. O bar, é claro, é por minha conta. O balcão em que vejo os dois amigos apoiados. Um que presta solidariedade ao outro diante da “ingratidão, esta pantera”. O cenário da poesia também faz parte da busca de uma atmosfera. É teatro também o verso de um poeta. José, de Drummond, precisa saber que a festa acabou. A terra está arrasada. Dá-se uma parada dramática a cada “E agora, você?”. Fodeu geral. O poeta Nelson Maca, lá de Salvador, é outro que bate o olho no horizonte e tudo verticaliza. Pedra e pau. A ira que faísca no olho do genial Maca toda vez em que ele solta o verbo. Gesticula a sua Gramática da Ira. Poesia não é catálogo de eletrodoméstico. Não é algo que se leia como se fosse uma petição. Tudo dentro de um mesmo ritmo líquido. Da água, que se bebe fria, à vida em ebulição.

*

Relendo os poemas do português Daniel Jonas (acima).

No Brasil, dele Os Fantasmas Inquilinos, publicado pela Todavia.

Eis duas das poesias abaixo.

E salve e salve e aquelabraço.

*

VELHO MESTRE

O silêncio
de um fruto sobre a mesa,
apenas ferido
por um gume de luz
no meridiano.

Mas nenhuma ameaça,
nem o arnês de dedos
formando-se no horizonte,
apenas o golpe do sol
afiado na vidraça.

Um fruto
é um velho mestre
esperando na luz
as trevas
do amadurecimento.



AMANTES

No limo do linho
polvos
atribulados

no enleio
dos seus
tentáculos

vulneráveis
jorrando tinta
em autodefesa,

como se ameaçados
procurassem
escrever.

*

A ESCRITA LITERÁRIA

O caderno pequeno está me ajudando a escrever. Encontrei o ritmo do meu novo romance por causa do caderninho. E estou escrevendo à mão. Por exemplo: quando eu quero retrair um pouco o ritmo de um conto, não vou ao computador. Escrevo na lentidão da letra manuscrita. No entanto, a maioria das minhas narrativas é composta mesmo assistindo, na tela, ao arquivo branco do Word. E, preferencialmente, em fonte Times New Roman. Usando muito Control C, Control V. Isso, com certeza, influencia a nossa criação, pode crer. Uma vez, em uma entrevista, um famoso dramaturgo falou da importância do tec tec da máquina de datilografia para o tom dramático em seus diálogos. Imagino, tempos antes, a pena de Cervantes escrevendo à luz de vela todo o calhamaço de O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de la Mancha. O personagem só podia ter pirado, é claro. E as canetas-tinteiros? Borrando de sombras os dedos de autores feito Augusto dos Anjos. Machado de Assis, Lima Barreto. E tem a história clássica do clássico On The Road. Jack Kerouac datilografou o romance, de forma alucinada, durante três semanas, em um rolo de papel para telex de 40 metros. Defendeu à época: foi meio um processo de improviso jazzístico. O meu atual caso é um tanto camerístico. Explico a técnica: é uma história meio rudimentar. Em um ambiente parado no ar. Daí a escolha da caneta (tem de ser sempre preta) e a minha caligrafia que só eu entendo. Os dedos doem e isso me ajuda na trajetória simplória do protagonista. Eu em uma travessia, inglória, à cata de uma linguagem sertaneja. Quase uma devoção. Penso nos cadernos de Carolina Maria de Jesus, alguns deles encontrados no lixão. E aqui não vai nenhuma comparação. É só para dizer que o suporte, onde se coloca a palavra “inscrita”, também não deixa de ser autoral. Tentei outros cadernos dos vários que eu tenho. Mas foi este, pequeno (no tamanho magro), que me deu o tom da história. A palavra, ali, encontrou o seu lugar no mundo. O nascimento a partir da natureza física do trabalho. O tempo. No contato íntimo, e fundo, com cada instrumento.

*

Nos papeis, perdidos, alguns poemas meus tão pequenos e tão antigos.

Eis alguns, abaixo.

Que eu denominei, à época, de “cuzinhos”.

Quero, durante a quarentena, retomá-los.

Para manter a libido em dia e salve e salve e beijabraços.

*

no céu
da boca
chove
mijo



a saliva
do pau
na língua



todo cara
tem a cara
do caralho
que tem



o coração
é
uma
punheta
mal
batida



o olho
do teu cu
pela
fechadura



o cu
do mundo
também
é
redondo



abaixo
do
umbigo
um
bigode

*







OS INSTRUMENTOS DE QUEM ESCREVE

O violão é um outro braço. Isso fala sempre quem toca um violão. Ou um violino. Rabeca. Até o poeta Cartola já cantarolou, tão lindo: “Ah, este bojo perfeito / Que trago junto ao meu peito”. O instrumento como extensão dos órgãos do artista. O piano, por exemplo. Já ouvi dizer da própria boca de um concertista: todo pianista é um médico. Operando cada uma das teclas. O piano, um Lázaro deitado. Um coração, pelo toque do solista, ressuscitado. A guitarra, quantas foram incendiadas. Como se o virtuose queimasse as próprias vestes. E as atirasse, as cordas feridas, à plateia. E o tambor? É a vibração da alma. A carne. Um fóssil vivo pela batida dos ossos. E o saxofone então? E a flauta fálica? Não falta analogia (anatomia) para o som que se cospe. Uma gaita que a saliva morde entre os dentes. O toque dos dedos na harpa corpulenta. A sanfona safada. O pandeiro. O molejo da munheca. O baterista que treme. Em múltipla excitação. Uma sinfônica inteira de intestino. Pulmão, buceta, colhão. Membros sonoros. Daí, o mesmo digo do escritor e da escritora em manobra com seu repertório. A dicção de suas frases. A maneira como cada um, cada uma, compõe um conto. Põe na página (partitura) a sua literatura. A saber: escrever é desdobramento da língua de quem escreve. Unha, olho. Linha que passa pelo caminho da espinha. A eletricidade ao pé do ouvido. Do fundo do estômago vem o verso. Dá fome. Sofre com o calor. Geme no inverno. Em resumo: igualmente o romance que você manuscreve nos cadernos, digita nos arquivos de computador, é essa ponte constante. De dentro para fora. Atenção, orquestra. Um, dois, três. Mãos à obra. E bom show.

*